sexta-feira, 30 de outubro de 2009

Minha querida VHS: a contribuição técnica para uma história do audiovisual

Comunicação oral apresentada no VII Encontro Nacional de História da Mídia, Fortaleza, 2009.


Autoras:
LEILA BEATRIZ RIBEIRO, professora adjunta do Programa de Pós-Graduação em Memória Social (UNIRIO), SILVIA FRANCHINI, mestranda do Programa de Pós-Graduação em Memória Social (UNIRIO) e THAINÁ COSTA, graduanda em Museologia (UNIRIO).


Introdução

"A vida material é constituída pelos homens e pelas coisas, pelas coisas e pelos homens." (BUCAILLE; PESEZ, 1989, p. 28-29)

De quantas maneiras é possível pensar, falar ou escrever sobre a memória? Partindo de uma genealogia dramática em que o esquecido, o espontâneo, o desprevenido homem precisou criar uma memória diante das grandes ameaças para a vida coletiva? Ou é uma dádiva da deusa Mnemósine? Ou como o advento da escrita interferiu profundamente no uso social das mnemotécnicas? Ou quando os homens admitiram que a memória é algo que eles mesmos constroem a partir de suas relações sociais? Ou como a memória se tornou um dos pilares para o reconhecimento de identidades parciais e antiunificáveis, figurada numa multiplicidade de pequenos atos e gestos quase anônimos? Lembranças e esquecimentos, afetos e traumas, tangível e intangível... O conceito de memória é transdisciplinar, não se encerrando num único campo de saber.

Rebobine, Por Favor (Michel Gondry, EUA, 2008), trata da história de dois amigos: Jerry (Jack Black) e Mike (Mos Def). Jerry trabalha em um ferro velho e quer derrotar o sistema, vive em um trailer e é considerado um perdedor pela população. Mike trabalha na locadora Be Kind Rewind cujo dono Mr. Fletcher (Danny Glover) tem como um grande amigo e faz de tudo para não decepcioná-lo. Mr. Fletcher o dono da locadora tem grandes dificuldades financeiras em manter o lugar, que conta com grande variedade de filmes, porém todos em VHS. A locadora e residência de Mike e Mr. Fletcher encontra-se em um prédio condenado e sem manutenção, aonde – segundo Mr. Fletcher – teria vivido o grande astro do jazz Fats Waller (1904-1943), pianista, compositor e organista. Quando abordado por agentes da prefeitura sobre a hipótese de perder o imóvel condenado Mr. Fletcher decide pesquisar as grandes locadoras para implementar inovações em seu negócio. Mr. Fletcher viaja deixando Mike como responsável pela locadora. Este aceita a oportunidade e pretende não decepcionar seu patrão, mas seus planos começam a se frustrar quando Jerry ao tentar sabotar a rede de energia acaba magnetizado, e ao tentar pedir ajuda na locadora acaba desmagnetizando todas as fitas. Numa tentativa desesperada de não decepcionar o patrão no retorno da viagem Mike começa a refilmar os filmes da locadora, com a ajuda de Jerry e Alma (Melonie Diaz) – uma jovem latina, que eles recrutam na lavanderia do bairro – o trio traz grandes clássicos em versões de 20 minutos e muita criatividade. O público prontamente abraça os filmes batizados por Jerry como suecados e cada cliente pode escolher dois títulos a serem refilmados pelo trio por “apenas” 20 dólares. O sucesso é imediato e rapidamente a comunidade encontra-se envolvida e extasiada com as produções da locadora. Ao retornar Mr. Fletcher tenta inserir DVDs e tecnologia mais sofisticadas em seu negócio, mas a idéia de continuar com os clássicos em VHS de formas mais criativas e levantando um bom dinheiro para a reforma do prédio lhe convence. Para acelerar a entrada de dinheiro o trio decide diminuir o tempo das produções, mas para não irritar os clientes estes são convidados a estrelar seus filmes prediletos. Tudo parece muito bem na cidade até a chegada de agentes do FBI cobrando os direitos sobre os filmes, e falando em nome dos estúdios e com mandatos judiciais eles destroem as fitas. O ânimo da comunidade e das personagens ressurge quando Jerry propõe que filmem algo original, que faça parte da história local, e que nenhum estúdio hollywoodiano possa cobrar: a vida de Fats Waller. Toda a população é envolvida na produção de uma semana, com a confecção de cenários, figurinos e participação nas cenas. A história de Fats Waller é contada segundo a imaginação de cada um, tornando todos autores da trama. A grande estréia é no dia em que o prédio será demolido, aonde todos juntos podem contemplar a criação do filme mais bonito que a locadora já produziu, se despedindo do prédio e eternizando a memória da cidade.

Em Rebobine, Por Favor, os personagens ao buscarem preservar seu espaço de trabalho suecando blockbusters de uma locadora que ainda trabalha com fitas magnéticas, acabam por trazer a tona re-atualizações carregadas de memórias afetivas. A busca pela preservação dos filmes em um suporte desatualizado e do prédio da locadora se concretiza como um projeto de auto-preservação e re-escritura da história dos personagens: “O objeto é assim, no seu sentido estrito, realmente um espelho: as imagens que devolve podem apenas se suceder sem contradizer. É um espelho perfeito já que não emite imagens reais, mas aquelas desejadas" (BAUDRILLARD, 2004, p. 98).


Do ferro velho aos caça fantasmas

No filme Rebobine, Por Favor a memória é tecida por afetos e por expectativas diante do devir, concebida como foco de resistência no seio das relações de poder (GONDAR, 2005, p. 16). A personagem principal dessa teia se chama Jerry. Na mitologia norte-americana, Jerry é o loser: homem branco, gordo, sem família e que mora num trailer. Outro fato que o caracteriza é ser dono de um ferro velho, espaço onde os objetos são descartados por não serem mais úteis à sociedade. Jerry os assume como adorno identitário e os usa como mobília e vestimenta. Mas ele se incomoda com o papel social que lhe foi imposto, tanto que fica obcecado por destruir o distribuidor de energia elétrica do bairro, o seu principal antagonista: “a coisa extremamente útil”.

Esse anti-herói arranca gratuitamente o afeto de Mike, que não se configura como um “perdedor”, mas um excluído, vítima da escancarada discriminação racial norte-americana. A identificação com Jerry se deve ao fato de ele no fundo se achar uma pessoa à margem da sociedade, mas Mike acalanta dois referenciais sociais que o inserem como cidadão. Um é o dono da locadora de vídeo onde ele trabalha, Mr. Fletcher, e o outro é o pianista Fats Waller, que, segundo seu patrão, nasceu no prédio da loja.

Entre Mike e Mr. Fletcher não existe uma relação de patrão e empregado, mas uma relação paternal. É esperando a aprovação do “pai” que Mike cuida da locadora quando Mr. Fletcher está ausente. E é com desespero que ele percebe que as fitas foram desmagnetizadas, num acidente provocado por Jerry. A ameaça de perder o afeto do patrão é maior do que da possível perda do emprego. Moralmente obrigado a solucionar o problema, Mike propõe a seu amigo que eles refaçam os filmes. Neste momento acontece uma resignificação de tudo o que já estava preestabelecido: o projeto de Mike e Jerry envolve toda a comunidade da rua, tornando-os mobilizadores culturais. Os objetos do ferro velho são fontes inesgotáveis para cenários, figurinos e objetos de cena. As novas versões dos filmes, guiadas por seleção de cenas cujo único critério é afetivo e batizadas de sweeded (suecadas), são aceitas imediatamente pelos clientes [1]. O que era lixo vira útil.

A dupla se junta à personagem Alma, também cheia de pressupostos de marginalização: mulher, feia e latina. Os três juntos rompem com os enquadramentos sociais previamente impostos e, conscientes de que agora ocupam outros papéis, o do bem sucedido e o da celebridade [2], lutam pela sua perpetuação. O primeiro problema surge quando Mr. Fletcher volta à locadora e impõe a substituição da VHS pelo DVD, e a solução é uma engraçada suecagem do aparelho. O segundo problema é a apreensão dos vídeos pelo FBI. E Michel Gondry provoca: afinal, de quem são os filmes? Do realizador ou do espectador que se afeta e consequentemente se apropria do conteúdo como memória? A pergunta fica sem resposta. Em Rebobine, Por Favor, os vídeos são destruídos e a suecagem, desmobilizada [3].

A volta aos antigos papéis sociais não é feita imediatamente; antes é preciso preservar aquele momento anterior, eternizar em algum tipo de registro que não poderia ser outro senão o vídeo. A estória inédita escolhida é o nascimento de Fats Waller no prédio da locadora, revelada como apenas uma lenda criada por Mr. Fletcher para estimular Mike a não desanimar com as dificuldades. E a ‘suecagem’ aqui é assumida como forma artística do grupo.

"Nesse ponto, podemos articular o afeto e representação na produção da memória como partes integrantes de um mesmo processo. [...] Não existem, contudo, memórias fora de um contexto afetivo. Se, como artifício explicativo, desdobrarmos o processo de produção da memória em algumas etapas, deveremos considerar o afeto como a primeira. De todas as experiências que nós vivemos no aqui e no agora, selecionamos, como impressões ou lembranças, aquelas que nos afetam em um campo de relações. Todavia o que nos afeta é o que rompe com a mesmidade em que vivemos; a mesmidade não nos impressiona ou nos marca. O que nos afeta é antes um encontro, uma palavra nova, uma experiência singular. [...] Desse modo, se a memória é um processo, o que o deflagra são relações e afetos – em outros termos, são jogos de força. A representação poderia, ainda que não necessariamente, integrar este processo, mas nesse caso viria depois, como uma tentativa de dar sentido e direção ao que nos surpreendeu." (GONDAR, 2005, p. 25). [4]

A representação das relações e afetos em Rebobine, Por Favor é a produção e a exibição de Fats Waller was born here, na sequência final do filme. Mas ao longo do filme aparecem outras representações, em forma de objetos que caracterizam individualmente duas personagens. A primeira é o ferro velho que identifica Jerry e já comentamos sobre isso anteriormente. A segunda é a VHS. O diretor não explica textualmente por que Mr. Fletcher demora tanto para substituir as VHS's pelos DVD's, se há o interesse de perpetuar o negócio e preservar o prédio. Mas arriscamos dizer, por dedução, que a personagem evocada pelo objeto comercialmente obsoleto é o próprio dono da locadora [5]. Neste sentido a maior representação do filme é o próprio prédio condenado, que identifica a cidade e a descrença que os próprios moradores têm em relação a esta. Durante a narrativa quando os moradores participam das refilmagens o prédio passa a ser visto de forma diferente pela população, e quando todos se reúnem para a criação de um vídeo sobre Fats Waller e sua relação com a cidade o prédio se torna motivo de esforço de todos, para que não seja demolido.

O home video só foi possível com a invenção da fita magnética [6]. Mr. Fletcher só poderia ter o negócio de locação de filmes a partir desse momento. Provavelmente aprendeu o oficio, a gostar de cinema, a criar relações com seus clientes e a adotar informalmente Mike junto à gestão da administração da loja. A VHS evoca ao velho senhor a juventude e a ousadia de abrir um estabelecimento próprio. Substituí-la seria perder essa memória. Quando ele se vê obrigado a salvar o prédio no melhor estilo “ou eu ou ela”, pensa em enfim migrar para o DVD. Mas, nesse ponto da trama, a VHS também se resignifica e vira objeto de identidade do trio Mike, Jerry e Alma. Ela é o suporte dos vídeos suecados, que são o trabalho e a expressão artística deles.


Por uma biografia do audiovisual

"O objeto é assim, no seu sentido estrito, realmente um espelho: as imagens que devolve podem apenas se suceder sem contradizer. É um espelho perfeito já que não emite imagens reais, mas aquelas desejadas." (BAUDRILLARD, 2004, p.8)

"[...] os objetos materiais têm uma trajetória. [...] para traçar e explicar as biografias dos objetos é necessário examiná-los ‘em situação’, nas diversas modalidades e efeitos das apropriações de que foram parte. Não se trata de recompor um cenário material, mas de entender os artefatos na interação social." (MENESES, 2006)

De quantas maneiras é possível contar a história do audiovisual? Pelo seu conteúdo, suas obras e seus artistas? Ou por uma ordem cronológica, mostrando como a linguagem cinematográfica acompanhou as mudanças de paradigmas culturais? Ou como a percepção das imagens em movimento colaborou para uma mudança nas relações sociais? Ou pelo viés tecnológico? É por esse último que escolhemos pesquisar, apontando como a trajetória tecnológica do audiovisual o identifica, constituindo um patrimônio que vai além da inquestionável forma de expressão artística e cultural.

Entendemos por tecnologia audiovisual o conjunto de suportes, equipamentos e saberes técnicos. Associados eles evocam a memória da produção e da exibição; separados não conseguem ultrapassar o seu valor utilitário datado. Uma copiadora ótica por contato pode ser um caixa metálica exótica significando nada sem o testemunho do seu operador, narrando a complexidade do seu funcionamento. Por sua vez, a destreza do mesmo pode ficar desprezada sem a visualização da estranha máquina. Sem contar que o acesso à obra audiovisual só é possível na sua reprodução: sem o equipamento apropriado, o valioso conteúdo fica preso em suportes incompatíveis. O exemplo clássico é quando compramos um título importado, principalmente europeu. A política de preservação da diversidade cultural impõe que os continentes tenham sistemas de gravação e reprodução de cores distintos, tanto para as fitas magnéticas (NTSC, PAL, SECAM) quanto para as mídias digitais (região 1, 2, etc). Se não houver o cuidado de conversão do sistema de gravação, a exibição do conteúdo ficará comprometida.

"[...] a história do cinema em seus 110 anos de existência – seu período primevo, se preferirem – e a ainda mais breve história da preservação cinematográfica tem sido uma batalha contínua pela sobrevivência que se deu entre a miraculosa invenção das imagens fotográficas em movimento e a perversamente instável, autodestrutiva e cronicamente efêmera sucessão de suportes dos quais elas foram dependentes; a exploração mecânica e eletrônica aos quais elas foram constantemente sujeitas; e, ainda, à indiferença e negligência humana." (JEAVONS, 2007, p. 02).

A perspectiva tecnológica nos relembra a origem particular do audiovisual: uma arte só possível após a revolução industrial. E por ser um produto industrial é de sua característica fundamental a constante substituição. Na história do cinema existiram quatro ondas de destruição, nas quais novas tecnologias extinguiram antigas. Na primeira, datada de 1918, as películas que tinham diversos tipos de bitolas, perfurações e velocidades foram substituídas pela padronização da bitola 35 mm com quatro perfurações por fotograma e velocidade de 24 quadros por segundo. A segunda aconteceu em 1932, com a impressão ótica do som junto à imagem. Na década de 50, houve a substituição do filme de suporte de nitrato pelo de acetato não inflamável. E hoje vivemos a quarta, em que o cinema digital substitui gradativamente o cinema de película. Em todos esses momentos “ninguém levantou a hipótese de destruir filmes, mas os filmes foram destruídos.” (AMO, 2006). Mas quais testemunhos do passado esses suportes nos contam que é preciso considerá-los portadores de conhecimento passivo de resgate no contínuo histórico? Voltemos à VHS, ou melhor, à fita magnética.

"A fita magnética consiste de uma fina camada, capaz de registrar um sinal magnético, montada sobre um suporte de filme mais espesso. A camada magnética, ou cobertura superficial, consiste de um pigmento magnético suspenso em aglutinante de polímero. Conforme o próprio nome diz, o aglutinante mantém as partículas magnéticas juntas entre si e presas ao suporte da fita. A estrutura da cobertura superficial de uma fita magnética é similar à estrutura de uma gelatina contendo pedaços de frutas – o pigmento (pedaços de fruta) está suspenso na gelatina e é mantido coeso pela mesma. A cobertura superficial, ou camada magnética, é responsável pelo registro e armazenamento dos sinais magnéticos gravados sobre ela." (VAN BOGART, 1997, p. 4).

A princípio a fita magnética era usada exclusivamente para gravação sonora. A partir de 1956, na Ampex Corporation (EUA), foi inventado o primeiro equipamento de VT, que operava com rolos expostos, nos quais se armazenavam as imagens em movimento. Esse aparelho seria protagonista da ascensão do maior meio de comunicação eletrônico, a televisão. Antes do videoteipe as transmissões eram ao vivo e, com a demanda da gravação prévia, utilizou-se o 16 mm reversível [7], mas não era prático, pois somente depois de revelado era possível ver se a gravação e a montagem simultânea haviam funcionado.


A fita magnética proporcionava agilidade e controle aos profissionais da televisão. Como não era necessária nenhuma revelação fotoquímica, seria possível conferir in loco o sucesso ou não da gravação, abrindo para ousadias dramáticas e efeitos especiais que até então eram apenas permitidos ao cinema. Não precisava de pós-produção; na suíte da direção se editava e se produzia a matriz. Sem falar na possibilidade de reaproveitamento das fitas, com a regravação de novos conteúdos, prática que culminou na perda significativa de imagens do início da produção televisiva. Na década de 70, os rolos expostos foram substituídos por sistemas de cartuchos e o formato U-Matic passou a ser o padrão utilizado para gravação e edição, trazendo elementos novos aos programas como o uso de cenas externas (fora dos estúdios) nas novelas, a ampliação das tomadas jornalísticas nos locais dos acontecimentos e a reportagem documentária em lugares exóticos.

O sistema de cartuchos proporcionou novos formatos: a Sony lança a Betamax e a JVC, a VHS. Formatos não para a televisão, mas voltados ao usuário doméstico, um mercado constantemente contemplado na história do cinema. Desde 1912, com a invenção da Pathè-Kok, câmera e projetor para filmes não-inflamáveis de 28 mm, o cinegrafista amador poderia produzir imagens familiares e eventos sem pretensões artísticas ou comerciais. Mas as produções em película eram caríssimas e sempre ficaram limitadas a ciclos sociais elitizados. A fita magnética, por necessitar de um número mínimo de equipamentos - câmera e videocassete (demanda exigida pela TV, que precisava de mão-de-obra barata e autodidata para operá-los) - se popularizou velozmente em todas as camadas sociais. No final da década de 80, início dos 90 o videocassete era vendido em qualquer loja de eletrodomésticos, como acessório imprescindível para a televisão.

O entretenimento doméstico foi uma conseqüência inevitável, principalmente com o aumento da violência urbana. O lançamento do filme em home video é tão estratégico quanto a estréia nas salas de cinema. O espetáculo público passa a ser privado, ou melhor, individualizado. Com o advento do digital, cuja genealogia é a de que qualquer um pode produzir e exibir vídeos [8], a fragmentação multicultural achou o seu melhor suporte. Umas das exigências da era digital é que a pessoa saia da condição de espectador e produza representações dos seus afetos.


Considerações finais

No filme Rebobine, Por Favor, a referência ao projeto de resistência e de identidade estão presentes levando-se em conta a tentativa de salvar um espaço de trabalho – simbolizado como um espaço de prática e de permanência comunitária – e de moradia em vias de demolição. Os personagens confundem-se com lugares (prédio) e objetos (fita VHS): velhos, inúteis, obsoletos, ultrapassados, sem aparente valor de uso. Mais do que isso, os personagens representam a própria marginalidade de uma comunidade de negros, de latinos, de velhos etc. que buscam de alguma forma construir uma identidade própria sem pré-determinismos, dentro de um sistema político que eles legitimizam – nenhum deles se opõe a prefeitura ou ao FBI, eles querem apenas o reconhecimento e inserção histórica. Histórias que podem ser narradas sob a perspectiva da tecnologia.

"Para Bauman (2001: 146), atualmente, "manter as coisas por longo tempo, além de seu prazo de 'descarte' e além do momento em que seus 'substitutos novos e aperfeiçoados' estiverem em oferta é [...] sintoma de privação. Uma vez que a infinidade de possibilidades esvaziou a infinitude do tempo de seu poder sedutor, a durabilidade perde sua atração e passa de um recurso a um risco". A capacidade de descartar - e não mais de possuir - objetos parece reconfigurar os sistemas de atribuição e aquisição de status social, legitimidade e capitais simbólicos." (SILVEIRA, 2003, p. 8).

Poderíamos especificar ainda mais, mostrando como a escolha técnica influencia e marca as escolhas estéticas. Também a percepção, outro vértice fundamental para se conceitualizar a arte cinematográfica, pode ser alterada dependendo do suporte a ser usado. Ver O Cangaceiro de Lima Barreto, clássico brasileiro dos anos 50, na sala de cinema é completamente diferente de ver o mesmo filme na televisão. O conteúdo é o mesmo, mas a experiência é distinta. Mas mesmo tendo tão variados sentidos e significados, os objetos audiovisuais não conseguem transpor sua função utilitária. Uma vez obsoleto não se consegue vislumbrar outro destino além do descarte. Nem apoio para conservar ou expor a uma coleção tecnológica. Todos os esforços são para manter os conteúdos acessíveis, independentemente se é respeitado seu formato original. Entre o passado e o futuro do audiovisual, os protagonistas das relações sociais precisam reconhecer nos objetos, saberes, técnicas, valores e funções que agreguem sentidos e significados que possam ser transmitidos e partilhados por gerações.

Por outro lado, por que não enxergar o filme também como uma representação metafórica de resistência ao descarte, como uma crítica aos hábitos de consumo, à morte das coisas? A capacidade de descartar e não mais de possuir tem reconfigurado socialmente os capitais simbólicos, acelerando os processos de marginalização de quem não se adapta. O status está na rapidez em que se descarta, e não na preservação. O consumo deixou de ser material para ser cultural. Na narrativa em questão isto fica muito claro quando Mr. Fletcher pesquisa as grandes redes de locadoras, constatando que as pessoas consomem quantidade e não necessariamente qualidade, expondo cada vez produtos mais avançados e deixando de lado grandes clássicos que povoam ainda hoje a memória do cinema, e dos indivíduos.

O filme Rebobine, Por Favor, personifica também uma resistência ao apagamento da vontade de perpetuação dos grandes mitos e dos lugares, ainda que inventados e re-criados, por onde eles habitaram. A locadora Be Kind Rewind não guarda somente velhas e obsoletas fitas em VHS, não está localizada simplesmente em um prédio a ser preservado com histórias inventadas, ela guarda uma coleção de afetos e memórias onde objetos e pessoas se pretendem representar como uma memória de si cuja vontade de entesouramento se faz mediada por pessoas e objetos.


Referências

ABREU, R. e CHAGAS, M. (orgs.) Memória e patrimônio: ensaios contemporâneos. Rio de Janeiro: Lamparina, 2009.

AMO, A. Crisis de Conservación. Oleadas de Destrucción. Comunicação oral apresentada no FIAT/ IFTA World Conference, Madrid, 28 de outubro de 2006.

BAUDRILLARD, J. “O sistema marginal: a coleção”. In: ___. O sistema dos objetos. São Paulo: Perspectiva, 2004.

BAUMANN, Z. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar ed., 2001.

BUCAILLE, R. e PESEZ, J. M. Cultura material. In: ___ Enciclopédia Einaudi: Homo-Domestificação. Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1989, p.11-47 (V. 16).

DUARTE, L. F. D. “A construção social da memória moderna”. Boletim do Museu Nacional, no. 48. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 1983.

GONDAR, J. e DODEBEI, V. (orgs.). O que é memória social? Rio de Janeiro: Contra Capa Livraria/ Programa de Pós-Graduação em Memória Social da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, 2005.

JEAVONS, C. “A imagem em movimento: tema ou objeto?” Journal of Film Preservation, no. 73. Bruxelas: Federação Internacional de Arquivos Fílmicos, 2007.

LIMA, P. S. “Um diário pode servir ao mundo.” In­___: Em Cartaz: Rebobine, Por Favor (Be Kind Rewind), de Michel Gondry (EUA, 2008). Cinética: Cinema e Crítica, 2008.

MENESES, U. T. B. Memória e cultura material: documentos pessoais no espaço público.

MOLES, A. A. “Objeto e comunicação”. In: ___ et al. Semiologia dos objetos. Petrópolis, RJ: Vozes, 1972.

REBOBINE, Por Favor (Be Kind Rewind). Direção: Michel Gondry. EUA:2008. Europa Films.101 min.son.color.

RIBEIRO, R. J. Memórias de si, ou... .

SILVEIRA, F. "O parque dos objetos mortos: por uma arqueologia da materialidade das mídias". Ghrebh – Revista de Semiótica, Cultura e Mídia. 2003.

VAN BOGART, J. W. C. Armazenamento e manuseio de fitas magnéticas – um guia para bibliotecas e arquivos. Rio de Janeiro: Projeto conservação preventiva em bibliotecas e arquivos – Arquivo Nacional, 1997.

Notas

1. Que a partir de um determinado momento deixam de ser espectadores para atuar em frente à câmera.

2. Arte e trabalho trazendo dinheiro e fama, o velho american way of life atualizado na vertente da diversidade cultural.

3. No entanto, cabe aqui uma reflexão em torno da idéia de patrimônio a se confundir com a de propriedade. Se para os personagens a prática da suecagem e da apropriação dos conteúdos primários das histórias ainda que implique em ganhos materiais, ela também deixa potencialmente perceptível a possibilidade de apropriação mágica das formas de fazer artístico e cinematográfico. Indo mais longe, ao realizarem o documentário-ficção Fats Waller was born here, a garantia de preservação de uma memória recriada estava presente.

4. Acreditamos que o significado de “afeto” para autora seja o de produzir um movimento, isto é, tirar o indivíduo do seu lugar emotivo seguro e racional definido. E isso pode ser harmonioso ou traumático.

5. O prédio seria outro elemento para identificar Mr. Fletcher. Talvez até mais importante, pois é de sua propriedade. Quantos negros de sua idade são donos de imóveis? Esse status é um das motivações do orgulho nutrido por Mike.

6. Antes existia a projeção cinematográfica em espaços domésticos, mas o custo era extremamente alto e por isso ela era limitada apenas às famílias abastadas. Por isso a maioria dos filmes de família só retrata a elite e as outras classes sociais ficaram relegadas ao plano de fundo ou ao papel de coadjuvantes (criados domésticos).

7. Película sem negativo, gravada e revelada em positivo.

8. Exemplo indiscutível é o sucesso das obras domésticas no Youtube. As pessoas expõem seu cotidiano particular e produzem versões dos filmes de que mais gostam. Um exemplo famoso é o vídeo Charles bite my finger - again!, cujo enredo, um bebê que morde o irmão mais velho, já foi ‘suecado’ (pegando emprestado o termo de Rebobine, Por Favor) inúmeras vezes.

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