terça-feira, 22 de dezembro de 2009

Coleção de cacos

Já não coleciono selos. O mundo me inquizila.
Tem países demais, geografias demais.
Desisto.
Nunca chegaria a ter um álbum igual ao do Dr. Grisolia,
orgulho da cidade.
E toda gente coleciona
os mesmos pedacinhos de papel.
Agora coleciono cacos de louça
quebrada há muito tempo.
Cacos novos não servem.
Brancos também não.
Têm de ser coloridos e vetustos,
desenterrados — faço questão — da horta.
Guardo uma fortuna em rosinhas estilhaçadas,
restos de flores não conhecidas.
Tão pouco: só o roxo não delineado,
o carmezim absoluto,
o verde não sabendo
a que xícara serviu.
Mas eu refaço a flor por sua cor,
e é só minha tal flor, se a cor é minha
no caco de tigela.

O caco vem da terra como fruto
a me aguardar, segredo
que morta cozinheira ali depôs
para que um dia eu o desvendasse.
Lavrar, lavrar com mãos impacientes
um ouro desprezado
por todos da família. Bichos pequeninos
fogem de revolvido lar subterrâneo.
Vidros agressivos
ferem os dedos, preço
de descobrimento:
a coleção e seu sinal de sangue;
a coleção e seu risco de tétano;
a coleção que nenhum outro imita.
Escondo-a de José, por que não ria
nem jogue fora esse museu de sonho.

ANDRADE, Carlos Drummond de. Boitempo - Esquecer para Lembrar. Rio de Janeiro: editora Record, 2006.

terça-feira, 8 de dezembro de 2009

Encontro Museologia e Comunicação

Oficina promovida pelo Programa de Pós-Graduação em Memória Social (UNIRIO) e a Universidade Federal de Ouro Preto, nos dias 26 e 27 de novembro na cidade de Ouro Preto.

Palestrantes: Profa. Dra. Leila Beatriz Ribeiro e Profa. Dra. Priscilla Arigoni.

Convidados: Marcia Bessa, doutoranda em Memória Social (UNIRIO) e Kalindi Lopes, graduanda de Arquivologia (UNIRIO).


Prof.ª Priscilla Arigoni abre o Encontro Museologia e Comunicação.

Prof.ª Leila Ribeiro apresenta seu projeto de pesquisa aos alunos da UFOP.

As Professoras Leila e Priscilla orientam grupo de alunos no trabalho com a coleção.

Turma de Museologia e Comunicação I (UFOP/2009.1).

Coleção "Do rock ao pop, tudo é música".

Grupo da coleção de colares.

Doutoranda Márcia Bessa avalia uma das coleções dos alunos.

Grupo de coleção "Cada garrafa uma viagem...".

Grupo da coleção de chapéus.

Grupo da coleção de echarpes.

sexta-feira, 30 de outubro de 2009

Coleções, imagens e narrativas: experiências didática-pedagógicas oriundas de um projeto de pesquisa

Autoras:
LEILA BEATRIZ RIBEIRO,
Professora Adjunta II do Programa de Pós-Graduação em Memória Social (UNIRIO)
MÁRCIA BESSA (Márcia Cristina da Silva Sousa),
Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Memória Social (UNIRIO). Bolsista CAPES.


Introdução

A disciplina Tópicos Especiais em Ciência da Informação criada pelo Departamento de Processos Técnico-Documentais (DPTD) – da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO) – é oferecida aos cursos de Arquivologia, Biblioteconomia e Museologia e têm como ementa geral: “A abordagem de questões contemporâneas pertinentes ao campo da Ciência da Informação”. De caráter optativo, com uma carga horária de 45 créditos e com uma proposta abrangente ela oferece a possibilidade de os docentes do departamento agregarem conteúdos programáticos com os quais eles pesquisam. Nesse sentido, em meados do ano de 2008, começamos junto ao nosso grupo de pesquisa do projeto Mais do que posso contar: coleções, imagens e narrativas a articular a estrutura de uma disciplina que pudesse abranger os tópicos principais das práticas de colecionismo de interesse do grupo de pesquisa como um todo. Buscou-se ainda que essa disciplina atendesse às necessidades de alunos de graduação que ao se formar já estivessem mais afeitos a problematizarem tanto teóricoa como empiricamente questões ligadas às coleções, os objetos de coleção e os tradicionalmente intitulados lugares de memória. Nosso grupo de pesquisa é composto pela coordenadora, por monitores, bolsistas de iniciação científica, orientandos de monografia, bacharéis, alunos de mestrado e de doutorado e pesquisadores voluntários interessados em discutir questões relativas às práticas de colecionamento.

Nesse relato apresentamos primeiramente o nosso projeto de pesquisa que contribuiu para estruturar o corpo da disciplina tanto em conteúdo programático como em atividades didático-pedagógicas. Em seguida, descrevemos a disciplina em relação aos seus objetivos, conteúdo e às diversas atividades que foram realizadas nos 15 encontros. Por fim, apresentamos algumas considerações gerais que dizem respeito a nossa atividade como pesquisadora e como docente que estruturam uma disciplina em um curso de graduação, cuja temática e problematização se originam de um projeto de pesquisa desenvolvido na pós-graduação.


Constituindo coleções: o visível o invisível no espaço imaginário e fantasioso

O projeto de pesquisa Mais do que posso contar: coleções, imagens e narrativas propõe a investigação de temáticas localizadas em “áreas de interseção”, ou seja, discute a relação entre coleção e imagem problematizando as narrativas simbólicas e imaginárias dentro de uma perspectiva do patrimônio e da memória social. Nesse sentido, como um projeto interdisciplinar abarca a perspectiva de trabalhar a memória como um fenômeno cuja complexidade conceitual pode dar conta teórica e metodologicamente de formas de representação construídas coletivamente. Essas, por sua vez, podem se expressar a partir de objetos materiais e invisíveis referenciando as diversas formas narrativas em que indivíduos e grupos organizam suas coleções concretizadas a partir do entendimento do movimento significativo que essas narrativas enunciam. As coleções, assim, ao serem compostas por objetos materiais e invisíveis podem ser discutidas a partir de um atributo conceitual incluso na idéia, por exemplo, de documento que funcionaria como um “operador que nos permite acesso à problematização da memória social” (MESTRADO EM MEMÓRIA SOCIAL E DOCUMENTO, 1995, p. 29). Esses objetos estão incluídos teoricamente nos quadros sociais da memória que, segundo Halbwachs (2004) apontam para a existência de uma relação entre a nossa memória individual e a social, a partir de lembranças construídas por nós e que estão prenhes de significação e enunciam-se narrativamente de acordo com os mecanismos que ordenam, induzem e mesmo mudam nossas lembranças. É dessa forma que no bojo dos conceitos de visível (objetos expostos ao olhar terreno) e invisível (objetos expostos ao olhar divino) articulados por Pomian (1984), apontamos para essas possibilidades narrativas que cobrem de significações determinadas coleções que simbolizam o espaço imaginário das atividades humanas.

É nesse contexto que a pergunta deflagradora de Jeudy se aplica: A preservação cultural dos objetos e dos costumes muda de forma e de finalidade? O novo patrimônio deve ser problematizado a partir das funções sociais das memórias nessa sociedade cambiante, na qual os países industrializados desenvolvem suas próprias abordagens acerca das culturas urbanas e regionais. A idéia é interrogar os objetos culturais sobre as mutações das sociedades que os produziram (JEUDY, 1990).

Relacionar coleções e imagens é investigar possibilidades contemporâneas de verificação da concretização de determinadas coleções que passam a redundar ou compor instituições e/ou lugares de memória. Essas, por sua vez, podem abarcar o visível e o invisível em que tanto o imaginário como o simbólico são constituídos com e a partir de uma gama de objetos (simbólicos, imaginários e fantasiosos) como os existentes em coleções que agregam grampos da cruz de Cristo, sangue de Cristo, queijos petrificados, montículos de terra, figurinhas, livros, obras de arte, relíquias etc. até as possibilidades de enxergamos no espaço do imaginário a realização de uma coleção sistematizada ainda que não pertença à ordem do visível ou instituído.

Na realidade, o que nos interessa, é perceber como a idéia de colecionar, essa prática que além de retirar os objetos de circulação – de forma temporária ou definitiva –, os mantêm preservados em lugares especializados e imaginários – às vezes indefinidamente – e expostos – quando necessário e possível aos olhares públicos. O que têm levado durante séculos os indivíduos a acumularem, pode ser investigado relacionando, quando necessário à coleção concreta/simbólica e a coleção fantasiosa/imaginária, narrativas atravessadas por experiências e inseridas nos quadros de referência dos indivíduos sociais.

Assim é que, desde tempos imemoriais, quando o homem utilizando-se de registros variados, consegue fazer com que diversos tipos de suportes sejam institucionalizados espacialmente, localmente, culturalmente e alguns ainda se tornem hegemônicos durante uma determinada época e/ou em uma determinada sociedade. Pomian (1984) aponta que a história dos artefatos inicia-se por volta de três milhões de anos, dando condições aos estudiosos de já classificá-los em determinadas categorias. Dessa forma, como os mecanismos e as estratégias da narrativa se mantêm? De que maneira se narra? Entendemos que essas estruturas de manutenção são mais da ordem do discurso, tendo em vista que “em toda sociedade a produção do discurso é ao mesmo tempo controlada, selecionada, organizada e redistribuída por certo número de procedimentos que têm por função conjurar seus poderes e perigos, dominar seu acontecimento aleatório, esquivar sua pesada e temível materialidade” (FOUCAULT, 2002, p.9). É nesse sentido, que o suporte, no que tange a sua escolha e a sua própria sustentação social está no âmbito da sua eficiência técnica e no espaço de manutenção de seus elementos discursivos que necessitam ser respaldados ideologicamente.

Essas escolhas também pressupõem que a mediação entre o discurso narrado e o suporte escolhido enfrente por vezes a renúncia a uma mediação direta, em que o narrador – pelo menos no sentido clássico – deixe de vivificar o circuito da comunicação. No cinema, por exemplo, a câmara e os atores vão funcionar como elementos de interpolação entre o narrador e o público. O artifício, notadamente utilizado para que o narrador transforme-se em autor e se faça presente, tem sido apresentado na história cinematográfica com certa recorrência nas vozes em off, obras autobiográficas e/ou quando o personagem protagoniza de forma direta e/ou indireta o discurso do narrador (SEGRE, 1989).

No domínio das instituições, quais foram as estratégias concebidas para fortalecerem e/ou manterem as diversas formas narrativas que a História vivenciou? Se a narrativa é um discurso fundador, algo que faz buscar a origem das coisas primeiras, e apresenta uma capacidade de trazê-la para o presente, quebrando tempo e espaço; ela também reforça a idéia nostálgica de um passado que se quer fazer restaurar utopicamente no hoje (DIEHL, 2002).

Segall (2001) informa que no domínio do imaginário e da fantasia as estratégias narrativas vão se articular no presente atribuindo aos objetos, um caráter por vezes fetichista e às vezes reforçando alienadamente a perda do sujeito frente à atribuição mágica das coisas e na reificação ou coisificação das relações sociais. Nesse sentido, buscar interrogar objetos visíveis e invisíveis sob um aporte teórico e metodológico imagético sustenta-se na verificação contemporânea em que qualifica a intermediação técnica dos sujeitos com o mundo.

Da ficção, arte, religião, passando pela mitologia até chegarmos nos discursos modernos e na cultura de massa, o desejo de agregar se materializa nas diversas formas de colecionar: da enciclopédia da natureza a coleção de figurinhas, adultos, crianças, sábios, poderosos e anônimos, buscam sistematizar o caos, ou quem sabe representá-lo. Algumas uniformes, outras sem qualquer tipo de orientação e/ou mesmo conteúdo, tantas outras catalogadas, classificadas, preservadas dos olhos profanos, eram e são expostas somente aos deuses. Tantas outras não, pelo contrário, midiaticamente desnudas aos olhares ávidos dos públicos de museus e galerias, são multiplicadas e reproduzidas pelas máquinas fotográficas e expostas nas infovias globais. Mas, o que dizer daquelas que funcionariam mais como um subproduto da materialidade colecionável? Especula-se aqui é que, por baixo de uma coleção concreta (ou não) existe uma coleção imaginária que daria os elementos de ligação e legitimaria essa vontade de organizar algo que às vezes sequer se pode reter. É mais do âmbito do desejo de classificar objetos imaginários com relações construídas internamente que às vezes se materializam nas narrativas do colecionador ao descrever aquilo que está suposto ou submerso aos objetos visíveis ou invisíveis. Essas narrativas tecidas através dos diversos discursos podem ser apreendidas pelo olhar e pela escuta do outro quando esse ouvinte/leitor participa da troca/intercâmbio e busca ele mesmo trilhar o seu próprio caminho e dar um novo sentido narrativo. Parafraseando Pomian (1984), esse sentido remeterá de novo os objetos a um lugar do invisível, mas que será um outro lugar cujo destino será diferenciado de sua origem primeira.

O que faz com que indivíduos colecionem? Que tipo de perguntas os homens tem feito no decorrer dos séculos para procurarem, por exemplo, essas respostas nos objetos colecionados? Se o sentido utilitário fez com que homens primitivos se acompanhassem de alguns objetos em seus deslocamentos, com o passar dos séculos os objetos de culto e evocação vão sendo agregados e paulatinamente o sentido simbólico que alguns desses carregavam vão sendo estendidos aos outros. Do uso demarcado pela funcionalidade, passando pela sede de poder traduzida por objetos cobiçados por indivíduos, grupos e mesmo nações poderosas com o intuito de perpetuar-se, chegamos à contemporaneidade onde o desejo de acúmulo representado por grandes instituições aponta para um sentido de perda e de deslocamento frente a um presente destituído de origens e de um futuro incerto distanciando substancialmente o homem cada vez mais de projeções idealizáveis.

Em qualquer sociedade existem objetos mantidos temporária ou definitivamente fora do circuito das atividades econômicas, sujeitos a uma proteção especial e expostos ao olhar dos deuses ou dos homens: os objetos de coleção. Privados de utilidade, estes são portanto privados de valor de uso, tendo todavia um valor de troca que se traduz na existência de um mercado em que são comprados e vendidos. Este valor de troca depende dos diversos significados atribuídos aos objetos de coleção pelos mitos, e em geral pelas tradições. Com efeito, aqueles são considerados no quadro da permuta que une os deuses e os homens, os heróis e o comum dos mortais, o além e o mundo terreno, o tempo das origens e o presente, o longe e o perto. Daí o seu vínculo à religião, substituído apenas na idade moderna por interesses estéticos, científicos ou, mais recentemente ainda, pela afirmação ideológica de entidades nacionais. Suporte de memória coletiva e das fontes da história dos homens e da terra, os objetos de coleção fazem parte de uma classe mais ampla, a dos semióforos, a quem pertencem também as obras de arte, os objetos em metais preciosos, a moeda, etc. Enquanto portadores de significado, todos estes objetos encarnam a riqueza e/ou o poder, o que explica os comportamentos agonísticos de que são muitas vezes a expressão (POMIAN, 1984, p. 86).

Perguntamo-nos ainda se, no espaço da pós-modernidade, do sujeito fragmentado a coleção ainda supõe esse caráter de assegurar e mesmo legitimar a comunicação entre dois mundos. Pomian atesta essa funcionalidade intrínseca das coleções defendendo que os objetos são elementos de intercomunicação entre espectadores e os outros que são representados[a fonte está menor aqui] pelos objetos expostos. Mas, afirma que a História das coleções contemporâneas ainda está por ser estudada.

Se o invisível é engendrado pela linguagem, conforme afirma Pomian, a narratividade enunciada pelas coleções imagéticas pressupõe dois espaços de apreensão: o discursivo (acessado pela palavra) e o da visão (acessado pelo olhar) garantidos, diríamos ainda, pela capacidade de legitimação que determinados suportes e/ou linguagens asseguram a perpetuação de elementos de intercâmbio e preservação da memória. Mas, o invisível, superior ao espaço do visível, coloca-se numa esfera privilegiada “de fecundidade” que faz com que as experiências individuais e coletivas sempre retornem a ele. Num trajeto espaço-temporal, o homem vai se interessar pelo aparecimento, transformação e desaparecimento de fenômenos e coisas, mantendo-o interligado a essas duas esferas e legitimando todos os objetos que parecem ligar-se ao invisível porque são essas representações que fazem com que ele se transcenda e comunique-se com os deuses.

E é assim não só nos casos dos objetos. A procura do significado, a tendência a estabelecer e a reforçar os laços com o invisível, faz sempre em detrimento da utilidade, chegando no limite comportamentos auto-destrutivos: doze mil índios Tupis do Brasil partiram em 1539 em direção à “terra sem mal”; dez anos mais tarde, no termo desta peregrinação, eram trezentos [cf. Clastres 1975]. [...], o invisível impõe aos homens com uma força tão grande, senão maior do que aquela que é própria do visível. Evidentemente, os casos extremos em que um dos termos da oposição é sacrificado são raros; em geral tenta-se encontrar um ponto de equilibro, conciliar tanto quanto possível as duas tendências contrárias. Mas é um equilíbrio necessariamente instável, sobretudo nas sociedades cuja escola entre a utilidade e o significado se torna num declarar de um conflito (POMIAN, 1984, p. 73).

O significado de uma coleção pode abarcar espaços harmônicos onde objetos materiais e pertencentes ao cotidiano familiar (privado) e/ou institucional carregam sentidos à medida que eles vão traçando elementos de uma identidade de grupo. A esfera do invisível vai se desenhando a cada momento quando os objetos são selecionados, acondicionados, expostos e experenciados como suportes de memória. Esses objetos possibilitam a todos nós, viver um tipo de experiência numa procura de um lugar escondido pelo esquecimento de um povo ou de um indivíduo, mas preservado simbolicamente por uma pessoa ou grupo, um monumento e coleções materiais.

Não são só os objetos que se dividem em úteis e significantes. [...] O mesmo pode-se dizer das atividades humanas que, também elas, são classificadas segundo o posto que ocupam no eixo que vai de baixo para cima, das atividades utilitárias até aquelas que não produzem senão significados. E é assim que os próprios homens se encontram repartidos numa ou mais hierarquias. No topo destas encontra-se sempre um ou mais homens-semióforos, que são representantes do invisível: dos deuses ou de um deus, dos antepassados, da sociedade vista como um todo, etc. Na base situam-se, pelo seu lado, os homens-coisas, que têm apenas uma relação indireta com o invisível ou que não têm nenhuma, enquanto que o espaço intermédio é ocupado por aqueles que juntam, em diferentes graus, significado com utilidade (POMIAN, 1984, p. 73).

Os objetos de coleção inscrevem-se no espaço de intermediação permitindo a perpetuação identitária e simbólica de um grupo através do visível representado nas coleções por eles acumuladas. Representando mais do que objetos significantes, estes, por sua vez quando olhados e experenciados magicamente alçam alguns indivíduos ou grupos ao espaço do divino, no caso, do identitário.

Os espaços de coleta dos colecionadores nos remetem a um mundo possível coroado de objetos visíveis e invisíveis que ao serem re-significados e expostos ao olhares públicos passam a fazer parte de um circuito em que estes e seus significados adquirem outro caráter e mesmo outra temporalidade. Mas o que dizer das classificações e coleções imaginárias? Será no espaço dos deuses e inacessível às vistas humanas que esses objetos irão transitar? Quais são as pistas e os indícios que conseguiremos perceber para que o acesso ao imaginário e fantasioso de tantas coleções existentes possa ser acionado?


Narrando e expondo uma disciplina

A disciplina Tópicos Especiais em Ciência da Informação oferecida no primeiro semestre de 2009 apresentou o seguinte subtítulo: Coleção e memória: a trajetória informacional dos objetos de coleção. As aulas foram ministradas pela professora responsável e com a colaboração de doutorandos, mestrandos, bacharéis, bolsistas de iniciação científica e monitores e contou com uma turma composta de 38 alunos. Como objetivo geral, a disciplina teve como proposta “discutir como as imagens e as narrativas, no âmbito do simbólico e imaginário, apontam para a construção de uma trajetória informacional cuja constituição patrimonial abarque objetos visíveis e invisíveis”. Especificamente elencamos os seguintes objetivos:

1. Perceber, a partir da análise de imagens colecionáveis, quais as narrativas experienciadas pelos sujeitos, tendo como pano de fundo o quadro social das memórias coletivas;

2. Traçar as trajetórias informacionais dos objetos colecionáveis visando a construção/representação de suas configurações (arranjo, classificação e manipulação) ;

3. Identificar os processos de construção e os mecanismos de apropriação que os sujeitos elaboram para categorizar objetos materiais e imaginários;

4. Simular a criação de uma coleção coletiva (com objetos de coleções pessoais e/ou objetos a serem colecionáveis) que permita aplicar as categorias-chaves das práticas colecionistas (coleção, colecionador, objeto, objeto de coleção e lugar de memória).

Dentro de seu conteúdo programático as seguintes problematizações teóricas e pragmáticas assim foram dispostas: As práticas de colecionamento. A coleção como patrimônio. Coleções privadas, públicas e imaginárias. Processo de produção, circulação, consumo e descarte dos objetos. Os objetos, materialidade, intencionalidade e historicidade; seu valor social e ritual, suas significações e re-significações nos diversos espaços/lugares/instituições de memória. Categorias epistemológicas dos objetos. O estatuto do objeto. Tipologias das coleções e dos objetos: materiais, imateriais, imaginários etc. O colecionador como guardião de memória. Tratamento e representação informacional dos objetos de coleção. Métodos e instrumentos de análise dos objetos de coleção: fichas analítico-descritivas, catálogos etc.

Nos quinze encontros foram realizadas as seguintes atividades: aulas expositivas; apresentação de filmes, de HQs e de tiras de jornais; debate de textos; visita a uma exposição de arte; palestra com artistas plásticos; elaboração de relatórios de visita; análise de uma coleção com a construção de fichas de análise-descritiva de objetos de coleção; e montagem e exposição de uma coleção em uma oficina. Teoricamente a disciplina obedeceu à estrutura originária do projeto de pesquisa que estabelece como fluxo básico os seguintes processos dos objetos de coleção: a produção; a circulação e o uso/recepção. Metodologicamente essa composição contou com discussões categorizadas nos seguintes eixos: a) A coleção: sua construção, relação com o colecionador e o objeto e os lugares instituintes; b) Os colecionadores: interlocutores a presentificar a memória de um grupo, lutando contra a dispersão das coisas e do esquecimento; c) As instituições: espaços de exposição do profano e do sagrado; d) O estatuto do objeto: o objeto (como objeto) e o objeto de coleção; e) A trajetória do objeto: inventário; catalogação; funcionalidade, sacralização; fetiche; desmanche; descarte; desuso e dispersão; f) O colecionismo: restos e resistência; lembrança e esquecimento; identidade e pertencimento; g) Inventário de objetos do mundo.

A primeira aula contou com a participação de todos os membros do grupo de pesquisa e como aula introdutória foi realizada a apresentação do grupo e uma breve síntese acerca da estrutura do programa (metodologia, atividades e avaliações).

Nas aulas 2, 3 e 4 cujo eixo teórico era a produção, apontamos entre os aspectos problematizados, a constituição da coleção, o colecionador e o objeto e lugares de memória. Em relação à coleção destacamos um fragmento de Pomian que bem representa a forma como entendemos a prática colecionista:

[...] uma coleção, isto é, qualquer conjunto de objetos naturais ou artificiais, mantido temporariamente ou definitivamente fora do circuito das atividades econômicas, sujeitos a uma proteção especial num local fechado preparado para esse fim, e exposto ao olhar do público (POMIAN, 1984, p.53).

Os colecionadores são vistos por nós como os interlocutores que tem como propósito a presentificação da memória de um grupo e são os que lutam contra a dispersão das coisas e contra o esquecimento. Sobre o significado de objeto, tendo em vista o seu estatuto – o objeto (como objeto) e o objeto de coleção, apropriamo-nos também do pensamento do mesmo autor quando este problematiza a importância da agregação de valor a determinados objetos: “[...] os semióforos, objetos que não tem utilidade, no sentido que acaba de ser precisado, mas que representam o invisível, são dotados de um significado; não sendo manipulados, mas expostos ao olhar, não sofrem usura” (POMIAN, 1984, p.71). Por fim, o último tema, as instituições de memória foram abordadas como espaços de exposição tanto do profano quanto do sagrado.

Na aula 5, intitulada A trajetória do objeto: inventário e catalogação, foi realizado um exercício com fichas analítico-descritivas de objetos de coleção. Sendo uma aula voltada para a prática, ela serviu também como uma forma de avaliação dos discentes e onde cada um dos componentes do grupo de pesquisa levou para aula uma mostra de coleção, contendo entre 5 e 7 exemplares. Os alunos foram separados em 08 grupos, escolheram os objetos previamente selecionados e após a análise e descrição da coleção preencheram as fichas previamente preparadas. O término do exercício foi a apresentação de cada um dos grupos para toda a turma. Abaixo apresentamos o modelo das fichas trabalhadas em sala de aula.


O segundo eixo da disciplina intitulado Circulação contou com três aulas teórico-expositivas e mais 01 aula-visita. A trajetória do objeto foi tematizada levando-se em conta primeiramente a sua funcionalidade, estágio clássico de um objeto ainda no espaço do profano, no circuito das mercadorias. No segundo estágio de qualificação do objeto, este foi abordado fora do circuito, quando se torna sacralizado e por vezes é objeto de fetiche de muitos colecionadores, por exemplo. Por último tematizamos uma questão da contemporaneidade que diz respeito às formas de desmanche, descarte e desuso dos objetos. Para tal discussão trouxemos à luz os problemas referentes ao consumo desenfreado das sociedades pós-industriais e o acúmulo e desperdício do descarte. Uma das aulas foi dedicada à visitação de uma exposição de arte intitulada “Objetos”, que contou com a presença do próprio artista plástico Ivo Almico. Posteriormente os alunos preencheram um relatório, modelo apresentado abaixo, sobre a visita que serviu como a segunda parte da primeira avaliação da disciplina.

O último segmento da disciplina nomeado Uso/recepção foi composto de 06 aulas. A primeira aula (de número 10), contou com a presença de dois artistas plásticos Marcos Cardoso e Edmilson Nunes. Esses artistas de arte contemporânea além de tematizarem sobre a questão dos objetos como restos e elementos de resistência e de denúncia, trouxeram para a sala de aula algumas de suas obras. Nas duas aulas subseqüentes (11 e 12) abordamos o colecionismo como uma prática que pode ser discutida sob a ótica dos pares lembrança-esquecimento e identidade-pertencimento. Na aula 13 foi apresentado um desfecho teórico da disciplina em que todos os temas anteriormente discutidos foram repassados e sistematizados. As aulas 14 e 15 finalizaram a disciplina e foram escolhidas para a segunda avaliação que constou da montagem e exposição de uma coleção coletiva intitulada Inventário de objetos do mundo. A turma escolheu como representação desse inventário de objetos do mundo a memória de/das famílias e foram propostos os seguintes subtemas: Correspondência, Indumentária, Selo, Fotografia, Miniatura, Brinquedos, Souvenires e Música. Cada um dos 08 grupos teve como tarefa nessas duas aulas: 1) Explicar o tema geral, elaborando um texto de apresentação; 2) Nomear o subtema e relacioná-lo com o tema geral, dando sentido de coleção, práticas de colecionismo e objetos de coleção; 3) Categorizar cada objeto escolhido. OBS: Planejar a exposição da Coleção para próxima aula; materiais a serem utilizados e recursos necessários. Montagem da exposição e Exposição, apresentação e avaliação.


Abaixo transcrevemos o texto de apresentação da exposição elaborado coletivamente pela turma.

Coleções de Mundo: Memórias de Família

A construção de uma coleção a partir de objetos do mundo permite um variado leque de abordagens e discursos. Ao centrar a discussão na família, podemos então analisar questões mais especificas sobre o universo de significações, que com o passar do tempo, criou-se e modificou-se. Pode-se identificar, a priori, as diversas relações que os objetos de uma família constroem com seu colecionador. Uma codificação do universo invisível que através da linguagem pode ser materializado certo valor ou condição de excepcionalidade ao seu objeto.

São as relíquias familiares que manifestam historias e emoções, um tempo que só ao imaginário se refere. O contato com o objeto retirado de seu uso original garante a existência de uma percepção diferenciada assim como a noção de experiência. Possuí-las permite-nos a construção de um mundo organizado com um arranjo próprio. As lembranças evocadas pelo suporte devem assim montar um elo, um sentido que relaciona objetos que em sua completude é o reflexo do próprio colecionador.

A qualidade cotidiana dos objetos colecionados incita o vasto imaginário coletivo que será assimilado às peças. Nas antigas cartas ou cartões-postais, na lembrança da musica que era ouvida nas festas e nas roupas do seu tempo são transportadas mensagens e signos que com certo ordenamento organizamos nosso mundo.

A organização dos objetos em uma casa representa seu estatuto de usos. Por exemplo, um brinquedo no fundo do baú ou as lembranças da viajem de um parente na estante da sala até mesmo as cartas de família dentro de uma caixa no fundo da gaveta de um armário. Quantos micro espaços de memória se encontram dentro deste universo maior que é a casa e nele interagem de maneira dinâmica, por ventura serem trocados de lugar na ultima faxina, retirados do seu lugar por conta de novos exemplares ou a extinção na boca de um cachorro.

As famílias, cada uma a seu modo, sempre determinam uma hierarquia de espaço dentro da casa. Convivemos com estes objetos que nos cercam em seus respectivos espaços e certamente, daqui a uns anos, lembraremos deste sob a penteadeira no quarto dos fundos, como ficou durante 13 anos. O lugar de um objeto na casa se faz pela necessidade de uso. Contudo, podemos observar antigos ferros de passar como peso de porta.

Nossa casa é na verdade o grande e suntuoso museu da família. Que visto aos pedaços e em minúcias nos mostra que nem sempre as coleções são compostas por elementos que perderam sua função, como no caso do colecionador de livros. A coleção da família na sua casa é todo o universo de coisas que, quando necessário, serão usados. Caso não usados, estarão ali, dispostos ao olhar ou quem sabe seja doado para o brechó mais próximo.


Considerações parciais


A disciplina Tópicos Especiais em Ciência da Informação oferecida no primeiro semestre de 2009 e que teve como subtítulo: Coleção e memória: a trajetória informacional dos objetos de coleção buscou dar conta de forma sistematizada das experiências teórico-metodológicas de um grupo de pesquisa. Colocar em prática discussões de cunho acadêmico e questionamentos teóricos de projetos de pesquisa ainda em andamento – tanto da coordenadora quanto dos alunos de pós-graduação – frente a uma turma de graduação foi um grande desafio. Mais do que isso, foi estimulante montarmos uma disciplina com tantos componentes e gerenciar diferenças e aproximar convergências. Destacamos que o grupo está atualmente processando tecnicamente o material documental e iconográfico da disciplina com vistas à produção de um documentário.

Discutir coleções narradas por tantas vozes e olhares significa refletir como os indivíduos estabelecem seu circuito de comunicação social que se materializa em suportes de transmissão – os objetos culturais e imateriais – transformados em bem coletivo e que se traduzem no plano da cultura.
Não podemos perder de vista que as análises em torno das significações, das representações e dos discursos estarão de uma forma ou de outra demarcadas pelo presente. Aqui, nos remetemos aos espaços onde essas práticas são vivenciadas analiticamente e que dizem respeito em síntese, a um lugar onde uma nova práxis será elaborada em função dos lugares, dos sujeitos e das relações aí estabelecidas. Dessa forma, como qualquer outro tipo de prática humana, o lugar dos sujeitos que interagem nos processos de mediação simbólica e social, tem que ser visto como um espaço de relações em que ambas as partes constituintes estarão revestidas de significados, saberes e informações, antecedendo a constituição das próprias práticas.

Referências

ABREU, M. Coleção e cidade: imagens urbanas e prática de colecionar. Anais do Museu Histórico Nacional, vol. 33, 2001.

APPADURAI, A. (editor). La vida social de las coisas: perspectiva cultural de lãs mercancias. México: Consejo Nacional para La Cultura y las artes/Editorial Grijalbo, 1991.

BARTHES, R. Aventura semiológica. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

BAUDRILLARD, J. O sistema dos objetos. São Paulo: Perspectiva, 2004.

BENJAMIN, W. O colecionador. In: ___. Passagens. Belo Horizonte: Editora da UFMG; São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2006. p. 237-246.

BLOM, P. Ter e manter: uma história íntima de colecionadores e coleções. Rio de Janeiro: Record, 2003.

BUCAILLE, R. e PESEZ, J-M. Cultura material. In: ___ Enciclopédia Einaudi: Homo-Domestificação. Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1989, p.11-47. (V. 16)

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FOUCAULT, M. A ordem do discurso. 8a. ed. São Paulo: Loyola, 2002.

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RIO DE CINEMAS. Dirigido por Juliana Simões, Silvia Fraiha e Nice Benedictis. BRA: 2000, 1DVD (55min), son., color., 35mim.

TOY STORY 2. Dirigido por John Lasseter. EUA: Pixar Animation Studios. 1999. 92 min., sonoro, colorido. (animação).

UMA VIDA Iluminada (Everything is Illuminated). Dirigido por Liev Schreiber. Warner Independent Picture. son. color. 105 min. 2005.

WALL-E (WALL-E) Dirigido por Andrew Stanton. Pixar Animation Studios. 2008. 98 min., sonoro, colorido. (animação).

Minha querida VHS: a contribuição técnica para uma história do audiovisual

Comunicação oral apresentada no VII Encontro Nacional de História da Mídia, Fortaleza, 2009.


Autoras:
LEILA BEATRIZ RIBEIRO, professora adjunta do Programa de Pós-Graduação em Memória Social (UNIRIO), SILVIA FRANCHINI, mestranda do Programa de Pós-Graduação em Memória Social (UNIRIO) e THAINÁ COSTA, graduanda em Museologia (UNIRIO).


Introdução

"A vida material é constituída pelos homens e pelas coisas, pelas coisas e pelos homens." (BUCAILLE; PESEZ, 1989, p. 28-29)

De quantas maneiras é possível pensar, falar ou escrever sobre a memória? Partindo de uma genealogia dramática em que o esquecido, o espontâneo, o desprevenido homem precisou criar uma memória diante das grandes ameaças para a vida coletiva? Ou é uma dádiva da deusa Mnemósine? Ou como o advento da escrita interferiu profundamente no uso social das mnemotécnicas? Ou quando os homens admitiram que a memória é algo que eles mesmos constroem a partir de suas relações sociais? Ou como a memória se tornou um dos pilares para o reconhecimento de identidades parciais e antiunificáveis, figurada numa multiplicidade de pequenos atos e gestos quase anônimos? Lembranças e esquecimentos, afetos e traumas, tangível e intangível... O conceito de memória é transdisciplinar, não se encerrando num único campo de saber.

Rebobine, Por Favor (Michel Gondry, EUA, 2008), trata da história de dois amigos: Jerry (Jack Black) e Mike (Mos Def). Jerry trabalha em um ferro velho e quer derrotar o sistema, vive em um trailer e é considerado um perdedor pela população. Mike trabalha na locadora Be Kind Rewind cujo dono Mr. Fletcher (Danny Glover) tem como um grande amigo e faz de tudo para não decepcioná-lo. Mr. Fletcher o dono da locadora tem grandes dificuldades financeiras em manter o lugar, que conta com grande variedade de filmes, porém todos em VHS. A locadora e residência de Mike e Mr. Fletcher encontra-se em um prédio condenado e sem manutenção, aonde – segundo Mr. Fletcher – teria vivido o grande astro do jazz Fats Waller (1904-1943), pianista, compositor e organista. Quando abordado por agentes da prefeitura sobre a hipótese de perder o imóvel condenado Mr. Fletcher decide pesquisar as grandes locadoras para implementar inovações em seu negócio. Mr. Fletcher viaja deixando Mike como responsável pela locadora. Este aceita a oportunidade e pretende não decepcionar seu patrão, mas seus planos começam a se frustrar quando Jerry ao tentar sabotar a rede de energia acaba magnetizado, e ao tentar pedir ajuda na locadora acaba desmagnetizando todas as fitas. Numa tentativa desesperada de não decepcionar o patrão no retorno da viagem Mike começa a refilmar os filmes da locadora, com a ajuda de Jerry e Alma (Melonie Diaz) – uma jovem latina, que eles recrutam na lavanderia do bairro – o trio traz grandes clássicos em versões de 20 minutos e muita criatividade. O público prontamente abraça os filmes batizados por Jerry como suecados e cada cliente pode escolher dois títulos a serem refilmados pelo trio por “apenas” 20 dólares. O sucesso é imediato e rapidamente a comunidade encontra-se envolvida e extasiada com as produções da locadora. Ao retornar Mr. Fletcher tenta inserir DVDs e tecnologia mais sofisticadas em seu negócio, mas a idéia de continuar com os clássicos em VHS de formas mais criativas e levantando um bom dinheiro para a reforma do prédio lhe convence. Para acelerar a entrada de dinheiro o trio decide diminuir o tempo das produções, mas para não irritar os clientes estes são convidados a estrelar seus filmes prediletos. Tudo parece muito bem na cidade até a chegada de agentes do FBI cobrando os direitos sobre os filmes, e falando em nome dos estúdios e com mandatos judiciais eles destroem as fitas. O ânimo da comunidade e das personagens ressurge quando Jerry propõe que filmem algo original, que faça parte da história local, e que nenhum estúdio hollywoodiano possa cobrar: a vida de Fats Waller. Toda a população é envolvida na produção de uma semana, com a confecção de cenários, figurinos e participação nas cenas. A história de Fats Waller é contada segundo a imaginação de cada um, tornando todos autores da trama. A grande estréia é no dia em que o prédio será demolido, aonde todos juntos podem contemplar a criação do filme mais bonito que a locadora já produziu, se despedindo do prédio e eternizando a memória da cidade.

Em Rebobine, Por Favor, os personagens ao buscarem preservar seu espaço de trabalho suecando blockbusters de uma locadora que ainda trabalha com fitas magnéticas, acabam por trazer a tona re-atualizações carregadas de memórias afetivas. A busca pela preservação dos filmes em um suporte desatualizado e do prédio da locadora se concretiza como um projeto de auto-preservação e re-escritura da história dos personagens: “O objeto é assim, no seu sentido estrito, realmente um espelho: as imagens que devolve podem apenas se suceder sem contradizer. É um espelho perfeito já que não emite imagens reais, mas aquelas desejadas" (BAUDRILLARD, 2004, p. 98).


Do ferro velho aos caça fantasmas

No filme Rebobine, Por Favor a memória é tecida por afetos e por expectativas diante do devir, concebida como foco de resistência no seio das relações de poder (GONDAR, 2005, p. 16). A personagem principal dessa teia se chama Jerry. Na mitologia norte-americana, Jerry é o loser: homem branco, gordo, sem família e que mora num trailer. Outro fato que o caracteriza é ser dono de um ferro velho, espaço onde os objetos são descartados por não serem mais úteis à sociedade. Jerry os assume como adorno identitário e os usa como mobília e vestimenta. Mas ele se incomoda com o papel social que lhe foi imposto, tanto que fica obcecado por destruir o distribuidor de energia elétrica do bairro, o seu principal antagonista: “a coisa extremamente útil”.

Esse anti-herói arranca gratuitamente o afeto de Mike, que não se configura como um “perdedor”, mas um excluído, vítima da escancarada discriminação racial norte-americana. A identificação com Jerry se deve ao fato de ele no fundo se achar uma pessoa à margem da sociedade, mas Mike acalanta dois referenciais sociais que o inserem como cidadão. Um é o dono da locadora de vídeo onde ele trabalha, Mr. Fletcher, e o outro é o pianista Fats Waller, que, segundo seu patrão, nasceu no prédio da loja.

Entre Mike e Mr. Fletcher não existe uma relação de patrão e empregado, mas uma relação paternal. É esperando a aprovação do “pai” que Mike cuida da locadora quando Mr. Fletcher está ausente. E é com desespero que ele percebe que as fitas foram desmagnetizadas, num acidente provocado por Jerry. A ameaça de perder o afeto do patrão é maior do que da possível perda do emprego. Moralmente obrigado a solucionar o problema, Mike propõe a seu amigo que eles refaçam os filmes. Neste momento acontece uma resignificação de tudo o que já estava preestabelecido: o projeto de Mike e Jerry envolve toda a comunidade da rua, tornando-os mobilizadores culturais. Os objetos do ferro velho são fontes inesgotáveis para cenários, figurinos e objetos de cena. As novas versões dos filmes, guiadas por seleção de cenas cujo único critério é afetivo e batizadas de sweeded (suecadas), são aceitas imediatamente pelos clientes [1]. O que era lixo vira útil.

A dupla se junta à personagem Alma, também cheia de pressupostos de marginalização: mulher, feia e latina. Os três juntos rompem com os enquadramentos sociais previamente impostos e, conscientes de que agora ocupam outros papéis, o do bem sucedido e o da celebridade [2], lutam pela sua perpetuação. O primeiro problema surge quando Mr. Fletcher volta à locadora e impõe a substituição da VHS pelo DVD, e a solução é uma engraçada suecagem do aparelho. O segundo problema é a apreensão dos vídeos pelo FBI. E Michel Gondry provoca: afinal, de quem são os filmes? Do realizador ou do espectador que se afeta e consequentemente se apropria do conteúdo como memória? A pergunta fica sem resposta. Em Rebobine, Por Favor, os vídeos são destruídos e a suecagem, desmobilizada [3].

A volta aos antigos papéis sociais não é feita imediatamente; antes é preciso preservar aquele momento anterior, eternizar em algum tipo de registro que não poderia ser outro senão o vídeo. A estória inédita escolhida é o nascimento de Fats Waller no prédio da locadora, revelada como apenas uma lenda criada por Mr. Fletcher para estimular Mike a não desanimar com as dificuldades. E a ‘suecagem’ aqui é assumida como forma artística do grupo.

"Nesse ponto, podemos articular o afeto e representação na produção da memória como partes integrantes de um mesmo processo. [...] Não existem, contudo, memórias fora de um contexto afetivo. Se, como artifício explicativo, desdobrarmos o processo de produção da memória em algumas etapas, deveremos considerar o afeto como a primeira. De todas as experiências que nós vivemos no aqui e no agora, selecionamos, como impressões ou lembranças, aquelas que nos afetam em um campo de relações. Todavia o que nos afeta é o que rompe com a mesmidade em que vivemos; a mesmidade não nos impressiona ou nos marca. O que nos afeta é antes um encontro, uma palavra nova, uma experiência singular. [...] Desse modo, se a memória é um processo, o que o deflagra são relações e afetos – em outros termos, são jogos de força. A representação poderia, ainda que não necessariamente, integrar este processo, mas nesse caso viria depois, como uma tentativa de dar sentido e direção ao que nos surpreendeu." (GONDAR, 2005, p. 25). [4]

A representação das relações e afetos em Rebobine, Por Favor é a produção e a exibição de Fats Waller was born here, na sequência final do filme. Mas ao longo do filme aparecem outras representações, em forma de objetos que caracterizam individualmente duas personagens. A primeira é o ferro velho que identifica Jerry e já comentamos sobre isso anteriormente. A segunda é a VHS. O diretor não explica textualmente por que Mr. Fletcher demora tanto para substituir as VHS's pelos DVD's, se há o interesse de perpetuar o negócio e preservar o prédio. Mas arriscamos dizer, por dedução, que a personagem evocada pelo objeto comercialmente obsoleto é o próprio dono da locadora [5]. Neste sentido a maior representação do filme é o próprio prédio condenado, que identifica a cidade e a descrença que os próprios moradores têm em relação a esta. Durante a narrativa quando os moradores participam das refilmagens o prédio passa a ser visto de forma diferente pela população, e quando todos se reúnem para a criação de um vídeo sobre Fats Waller e sua relação com a cidade o prédio se torna motivo de esforço de todos, para que não seja demolido.

O home video só foi possível com a invenção da fita magnética [6]. Mr. Fletcher só poderia ter o negócio de locação de filmes a partir desse momento. Provavelmente aprendeu o oficio, a gostar de cinema, a criar relações com seus clientes e a adotar informalmente Mike junto à gestão da administração da loja. A VHS evoca ao velho senhor a juventude e a ousadia de abrir um estabelecimento próprio. Substituí-la seria perder essa memória. Quando ele se vê obrigado a salvar o prédio no melhor estilo “ou eu ou ela”, pensa em enfim migrar para o DVD. Mas, nesse ponto da trama, a VHS também se resignifica e vira objeto de identidade do trio Mike, Jerry e Alma. Ela é o suporte dos vídeos suecados, que são o trabalho e a expressão artística deles.


Por uma biografia do audiovisual

"O objeto é assim, no seu sentido estrito, realmente um espelho: as imagens que devolve podem apenas se suceder sem contradizer. É um espelho perfeito já que não emite imagens reais, mas aquelas desejadas." (BAUDRILLARD, 2004, p.8)

"[...] os objetos materiais têm uma trajetória. [...] para traçar e explicar as biografias dos objetos é necessário examiná-los ‘em situação’, nas diversas modalidades e efeitos das apropriações de que foram parte. Não se trata de recompor um cenário material, mas de entender os artefatos na interação social." (MENESES, 2006)

De quantas maneiras é possível contar a história do audiovisual? Pelo seu conteúdo, suas obras e seus artistas? Ou por uma ordem cronológica, mostrando como a linguagem cinematográfica acompanhou as mudanças de paradigmas culturais? Ou como a percepção das imagens em movimento colaborou para uma mudança nas relações sociais? Ou pelo viés tecnológico? É por esse último que escolhemos pesquisar, apontando como a trajetória tecnológica do audiovisual o identifica, constituindo um patrimônio que vai além da inquestionável forma de expressão artística e cultural.

Entendemos por tecnologia audiovisual o conjunto de suportes, equipamentos e saberes técnicos. Associados eles evocam a memória da produção e da exibição; separados não conseguem ultrapassar o seu valor utilitário datado. Uma copiadora ótica por contato pode ser um caixa metálica exótica significando nada sem o testemunho do seu operador, narrando a complexidade do seu funcionamento. Por sua vez, a destreza do mesmo pode ficar desprezada sem a visualização da estranha máquina. Sem contar que o acesso à obra audiovisual só é possível na sua reprodução: sem o equipamento apropriado, o valioso conteúdo fica preso em suportes incompatíveis. O exemplo clássico é quando compramos um título importado, principalmente europeu. A política de preservação da diversidade cultural impõe que os continentes tenham sistemas de gravação e reprodução de cores distintos, tanto para as fitas magnéticas (NTSC, PAL, SECAM) quanto para as mídias digitais (região 1, 2, etc). Se não houver o cuidado de conversão do sistema de gravação, a exibição do conteúdo ficará comprometida.

"[...] a história do cinema em seus 110 anos de existência – seu período primevo, se preferirem – e a ainda mais breve história da preservação cinematográfica tem sido uma batalha contínua pela sobrevivência que se deu entre a miraculosa invenção das imagens fotográficas em movimento e a perversamente instável, autodestrutiva e cronicamente efêmera sucessão de suportes dos quais elas foram dependentes; a exploração mecânica e eletrônica aos quais elas foram constantemente sujeitas; e, ainda, à indiferença e negligência humana." (JEAVONS, 2007, p. 02).

A perspectiva tecnológica nos relembra a origem particular do audiovisual: uma arte só possível após a revolução industrial. E por ser um produto industrial é de sua característica fundamental a constante substituição. Na história do cinema existiram quatro ondas de destruição, nas quais novas tecnologias extinguiram antigas. Na primeira, datada de 1918, as películas que tinham diversos tipos de bitolas, perfurações e velocidades foram substituídas pela padronização da bitola 35 mm com quatro perfurações por fotograma e velocidade de 24 quadros por segundo. A segunda aconteceu em 1932, com a impressão ótica do som junto à imagem. Na década de 50, houve a substituição do filme de suporte de nitrato pelo de acetato não inflamável. E hoje vivemos a quarta, em que o cinema digital substitui gradativamente o cinema de película. Em todos esses momentos “ninguém levantou a hipótese de destruir filmes, mas os filmes foram destruídos.” (AMO, 2006). Mas quais testemunhos do passado esses suportes nos contam que é preciso considerá-los portadores de conhecimento passivo de resgate no contínuo histórico? Voltemos à VHS, ou melhor, à fita magnética.

"A fita magnética consiste de uma fina camada, capaz de registrar um sinal magnético, montada sobre um suporte de filme mais espesso. A camada magnética, ou cobertura superficial, consiste de um pigmento magnético suspenso em aglutinante de polímero. Conforme o próprio nome diz, o aglutinante mantém as partículas magnéticas juntas entre si e presas ao suporte da fita. A estrutura da cobertura superficial de uma fita magnética é similar à estrutura de uma gelatina contendo pedaços de frutas – o pigmento (pedaços de fruta) está suspenso na gelatina e é mantido coeso pela mesma. A cobertura superficial, ou camada magnética, é responsável pelo registro e armazenamento dos sinais magnéticos gravados sobre ela." (VAN BOGART, 1997, p. 4).

A princípio a fita magnética era usada exclusivamente para gravação sonora. A partir de 1956, na Ampex Corporation (EUA), foi inventado o primeiro equipamento de VT, que operava com rolos expostos, nos quais se armazenavam as imagens em movimento. Esse aparelho seria protagonista da ascensão do maior meio de comunicação eletrônico, a televisão. Antes do videoteipe as transmissões eram ao vivo e, com a demanda da gravação prévia, utilizou-se o 16 mm reversível [7], mas não era prático, pois somente depois de revelado era possível ver se a gravação e a montagem simultânea haviam funcionado.


A fita magnética proporcionava agilidade e controle aos profissionais da televisão. Como não era necessária nenhuma revelação fotoquímica, seria possível conferir in loco o sucesso ou não da gravação, abrindo para ousadias dramáticas e efeitos especiais que até então eram apenas permitidos ao cinema. Não precisava de pós-produção; na suíte da direção se editava e se produzia a matriz. Sem falar na possibilidade de reaproveitamento das fitas, com a regravação de novos conteúdos, prática que culminou na perda significativa de imagens do início da produção televisiva. Na década de 70, os rolos expostos foram substituídos por sistemas de cartuchos e o formato U-Matic passou a ser o padrão utilizado para gravação e edição, trazendo elementos novos aos programas como o uso de cenas externas (fora dos estúdios) nas novelas, a ampliação das tomadas jornalísticas nos locais dos acontecimentos e a reportagem documentária em lugares exóticos.

O sistema de cartuchos proporcionou novos formatos: a Sony lança a Betamax e a JVC, a VHS. Formatos não para a televisão, mas voltados ao usuário doméstico, um mercado constantemente contemplado na história do cinema. Desde 1912, com a invenção da Pathè-Kok, câmera e projetor para filmes não-inflamáveis de 28 mm, o cinegrafista amador poderia produzir imagens familiares e eventos sem pretensões artísticas ou comerciais. Mas as produções em película eram caríssimas e sempre ficaram limitadas a ciclos sociais elitizados. A fita magnética, por necessitar de um número mínimo de equipamentos - câmera e videocassete (demanda exigida pela TV, que precisava de mão-de-obra barata e autodidata para operá-los) - se popularizou velozmente em todas as camadas sociais. No final da década de 80, início dos 90 o videocassete era vendido em qualquer loja de eletrodomésticos, como acessório imprescindível para a televisão.

O entretenimento doméstico foi uma conseqüência inevitável, principalmente com o aumento da violência urbana. O lançamento do filme em home video é tão estratégico quanto a estréia nas salas de cinema. O espetáculo público passa a ser privado, ou melhor, individualizado. Com o advento do digital, cuja genealogia é a de que qualquer um pode produzir e exibir vídeos [8], a fragmentação multicultural achou o seu melhor suporte. Umas das exigências da era digital é que a pessoa saia da condição de espectador e produza representações dos seus afetos.


Considerações finais

No filme Rebobine, Por Favor, a referência ao projeto de resistência e de identidade estão presentes levando-se em conta a tentativa de salvar um espaço de trabalho – simbolizado como um espaço de prática e de permanência comunitária – e de moradia em vias de demolição. Os personagens confundem-se com lugares (prédio) e objetos (fita VHS): velhos, inúteis, obsoletos, ultrapassados, sem aparente valor de uso. Mais do que isso, os personagens representam a própria marginalidade de uma comunidade de negros, de latinos, de velhos etc. que buscam de alguma forma construir uma identidade própria sem pré-determinismos, dentro de um sistema político que eles legitimizam – nenhum deles se opõe a prefeitura ou ao FBI, eles querem apenas o reconhecimento e inserção histórica. Histórias que podem ser narradas sob a perspectiva da tecnologia.

"Para Bauman (2001: 146), atualmente, "manter as coisas por longo tempo, além de seu prazo de 'descarte' e além do momento em que seus 'substitutos novos e aperfeiçoados' estiverem em oferta é [...] sintoma de privação. Uma vez que a infinidade de possibilidades esvaziou a infinitude do tempo de seu poder sedutor, a durabilidade perde sua atração e passa de um recurso a um risco". A capacidade de descartar - e não mais de possuir - objetos parece reconfigurar os sistemas de atribuição e aquisição de status social, legitimidade e capitais simbólicos." (SILVEIRA, 2003, p. 8).

Poderíamos especificar ainda mais, mostrando como a escolha técnica influencia e marca as escolhas estéticas. Também a percepção, outro vértice fundamental para se conceitualizar a arte cinematográfica, pode ser alterada dependendo do suporte a ser usado. Ver O Cangaceiro de Lima Barreto, clássico brasileiro dos anos 50, na sala de cinema é completamente diferente de ver o mesmo filme na televisão. O conteúdo é o mesmo, mas a experiência é distinta. Mas mesmo tendo tão variados sentidos e significados, os objetos audiovisuais não conseguem transpor sua função utilitária. Uma vez obsoleto não se consegue vislumbrar outro destino além do descarte. Nem apoio para conservar ou expor a uma coleção tecnológica. Todos os esforços são para manter os conteúdos acessíveis, independentemente se é respeitado seu formato original. Entre o passado e o futuro do audiovisual, os protagonistas das relações sociais precisam reconhecer nos objetos, saberes, técnicas, valores e funções que agreguem sentidos e significados que possam ser transmitidos e partilhados por gerações.

Por outro lado, por que não enxergar o filme também como uma representação metafórica de resistência ao descarte, como uma crítica aos hábitos de consumo, à morte das coisas? A capacidade de descartar e não mais de possuir tem reconfigurado socialmente os capitais simbólicos, acelerando os processos de marginalização de quem não se adapta. O status está na rapidez em que se descarta, e não na preservação. O consumo deixou de ser material para ser cultural. Na narrativa em questão isto fica muito claro quando Mr. Fletcher pesquisa as grandes redes de locadoras, constatando que as pessoas consomem quantidade e não necessariamente qualidade, expondo cada vez produtos mais avançados e deixando de lado grandes clássicos que povoam ainda hoje a memória do cinema, e dos indivíduos.

O filme Rebobine, Por Favor, personifica também uma resistência ao apagamento da vontade de perpetuação dos grandes mitos e dos lugares, ainda que inventados e re-criados, por onde eles habitaram. A locadora Be Kind Rewind não guarda somente velhas e obsoletas fitas em VHS, não está localizada simplesmente em um prédio a ser preservado com histórias inventadas, ela guarda uma coleção de afetos e memórias onde objetos e pessoas se pretendem representar como uma memória de si cuja vontade de entesouramento se faz mediada por pessoas e objetos.


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Notas

1. Que a partir de um determinado momento deixam de ser espectadores para atuar em frente à câmera.

2. Arte e trabalho trazendo dinheiro e fama, o velho american way of life atualizado na vertente da diversidade cultural.

3. No entanto, cabe aqui uma reflexão em torno da idéia de patrimônio a se confundir com a de propriedade. Se para os personagens a prática da suecagem e da apropriação dos conteúdos primários das histórias ainda que implique em ganhos materiais, ela também deixa potencialmente perceptível a possibilidade de apropriação mágica das formas de fazer artístico e cinematográfico. Indo mais longe, ao realizarem o documentário-ficção Fats Waller was born here, a garantia de preservação de uma memória recriada estava presente.

4. Acreditamos que o significado de “afeto” para autora seja o de produzir um movimento, isto é, tirar o indivíduo do seu lugar emotivo seguro e racional definido. E isso pode ser harmonioso ou traumático.

5. O prédio seria outro elemento para identificar Mr. Fletcher. Talvez até mais importante, pois é de sua propriedade. Quantos negros de sua idade são donos de imóveis? Esse status é um das motivações do orgulho nutrido por Mike.

6. Antes existia a projeção cinematográfica em espaços domésticos, mas o custo era extremamente alto e por isso ela era limitada apenas às famílias abastadas. Por isso a maioria dos filmes de família só retrata a elite e as outras classes sociais ficaram relegadas ao plano de fundo ou ao papel de coadjuvantes (criados domésticos).

7. Película sem negativo, gravada e revelada em positivo.

8. Exemplo indiscutível é o sucesso das obras domésticas no Youtube. As pessoas expõem seu cotidiano particular e produzem versões dos filmes de que mais gostam. Um exemplo famoso é o vídeo Charles bite my finger - again!, cujo enredo, um bebê que morde o irmão mais velho, já foi ‘suecado’ (pegando emprestado o termo de Rebobine, Por Favor) inúmeras vezes.

Mais do que posso contar: coleções, imagens e narrativas

Discutir o conceito de coleções articulado à idéia de imagens e narrativas no âmbito do simbólico e imaginário, pontando para a construção de uma trajetória de constituição patrimonial que abarque objetos visíveis e invisíveis. A percepção dessas configurações, expressas a partir de objetos materiais e invisíveis, referencia diversas formas narrativas e o entendimento do movimento significativo que elas enunciam no seu processo de organização e concretização. Os objetos envolvidos pelos quadros sociais da memória assinalam a existência de uma relação entre a nossa memória individual e a social.

Essa relação pode ser analisada a partir de lembranças que construímos – prenhes de significação – das narrativas que elas enunciam e dos mecanismos que ordenam, induzem ou podem alterá-la. No bojo dos conceitos de visível (objetos expostos ao olhar terreno) e invisível (objetos expostos ao olhar divino), articulados por Pomian, temos a possibilidade de enxergar no espaço do imaginário a realização de uma coleção sistematizada, ainda que não pertença à ordem do visível ou instituído.